As barragens e os direitos das futuras gerações
"Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra." Génesis, I:27
Construindo, por todo o planeta, as suas majestosas barragens, o Homem domina os rios mais caudalosos. Vêm-me à memória os documentários de atualidades da minha adolescência, quando, antes do filme da matinée, passavam no ecrã do cinema as imagens a preto e branco da propaganda do Estado Novo. Lembro-me das que noticiavam a inauguração da "obra do século", a barragem de Castelo do Bode, inaugurada por Salazar em 21 de janeiro de 1951.Lembro-me do orgulho com que, mais tarde, já no Técnico, se falava dos triunfos da engenharia portuguesa e se percorriam em visita de estudo as grandes barragens do norte do País. E depois, no LNEC, quando eu próprio trabalhei em barragens, estudando o seu comportamento estrutural em modelos reduzidos, mostrando aos engenheiros estrangeiros que nos visitavam como é que, usando mercúrio, simulávamos a ação da pressão hidrostática sobre as curvas elegantes das barragens-abóbada. Métodos que os computadores, poucos anos mais tarde, tornariam obsoletos.Mas, nessa altura, por outras paragens, muita coisa tinha já mudado na maneira como as pessoas e as comunidades vêm a construção de barragens. Logo no princípio do século passado a construção da barragem de O’Shaughnessy, no vale de Hetch Hetchy, Califórnia, encontrou forte resistência popular liderada pelo naturalista John Muir, o mesmo que promoveu a criação do parque natural de Yosemite.Em Portugal, as ações contra a construção de barragens começaram muito tardiamente. O caso da construção do aproveitamento hidroelétrico de Foz Coa, travado pela descoberta de figuras de arte rupestre no vale e definitivamente abandonado em 1995, constitui o exemplo mais destacado.Num impulso serôdio, ganhou forma e arrancou, há pouco tempo, no terreno, o Programa Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroelétrico (PNBEPH). Este plano prevê atualmente a construção de sete novas barragens, algumas das quais em vales que chegaram até aos nossos dias na sua condição pristina secular. Uma, a de Foz Tua, está já em construção, e implica a perda, na prática irreversível, do valioso património natural e cultural do Vale do Tua.Esta não é a primeira vez que as barragens estão no foco do tema de capa da P&C. O número 21, publicado há dez anos e dedicado ao tema "Energia e património", trazia na capa uma fotografia da "portentosa" nave dos alternadores da barragem de Miranda do Douro e um artigo sobre o trabalho, não de engenheiros, mas de arquitetos, nas barragens do Douro Internacional.O tema de capa do presente número da P&C concentra-se nas barragens, com as suas múltiplas funções e implicações. Os conteúdos dos artigos que dão corpo a esta nova abordagem do tema mostram bem como ele é complexo e controverso.Como engenheiro, é meu dever respeitar os princípios do desenvolvimento sustentável. Aquele que, segundo Chrisna du Plessis, permite manter um equilíbrio dinâmico duradouro entre as exigências das pessoas em equidade, prosperidade e qualidade de vida e o que é ecologicamente possível. Não tenho dúvidas que a construção de mais barragens em Portugal é dispensável e que há alternativas mais respeitadoras da sustentabilidade.Com exceção das barragens romanas ou como tal percebidas, este tipo de obra não tem, entre nós, merecido grande atenção enquanto património cultural construído. O Sistema de Informação para o Património Arquitetónico (SIPA) contém registos de 24 barragens "monumento", a maior parte das quais referenciadas como romanas. Que a barragem de Foz Tua pudesse ser travada, e que os blocos de betão já construídos pudessem ficar para a história como um monumento à visão da atual geração e como prova de que, afinal, tinha algum respeito pelos direitos dos que vêm a seguir!
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